PROFESSOR DE DIREITO PREVIDENCIÁRIO AFIRMA QUE A REFORMA DA PREVIDÊNCIA TEM CARÁTER FINANCISTA

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Em entrevista exclusiva à CSB, Wagner Balera diz que a Seguridade Social é superavitária no Brasil e detalha os principais pontos da PEC 287

Lançada pela equipe econômica do governo no início de dezembro de 2016, a reforma da Previdência foi enviada ao Congresso Nacional e continuará em tramitação na volta do recesso do Legislativo. A Proposta de Emenda à Constituição 287 propõe, entre outras medidas, o estabelecimento de uma idade mínima de 65 anos para homens e mulheres para a aposentadoria, a inclusão dos trabalhadores rurais no Regime Geral de Previdência Social e o fim da aposentadoria por tempo de contribuição.

Em entrevista exclusiva à Central dos Sindicatos Brasileiros, Wagner Balera, livre-docente em direito previdenciário e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, afirma que não há déficit na Previdência e critica propostas como o aumento da idade para o recebimento dos benefícios assistenciais e o uso da Desvinculação de Receitas da União (DRU). Para o especialista, o projeto se desloca do cenário social e se volta à questão financeira.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

CSB – Por que a proposta tem um caráter financista?

Wagner Balera – Primeiro que se parte de uma premissa errada. Qual é a premissa falsa? A Previdência está quebrada. Isso é falso, é falso porque a Previdência hoje em dia faz parte de um sistema que se chama Seguridade Social. Ela é um componente de um todo. Foi assim que a Constituição ordenou. A Constituição estabeleceu que existiu um sistema de ordem social, o lado social da Constituição. Ela tem um sistema de seguridade social, que é integrada pela saúde, previdência social e assistência social. Funciona de maneira sincronizada como um sistema, tanto que foi criado um orçamento separado para essa área. Então a Seguridade tem receita própria, gestão distinta do restante do Estado brasileiro e despesa. É como se fosse uma conta separada, que não é só de Previdência, é da Seguridade.

Então a Constituição proveu uma estrutura sistêmica e estabeleceu as fontes de arrecadação, que são de duas espécies: são as fontes diretas, chamadas de contribuições sociais, que todos os contribuintes – quando vem contribuição social – já sabem que essas contribuições já se destinam para a Seguridade Social. Existe a chamada receita direta, sacada da sociedade, e existe a receita indireta: União, estados, DF e municípios, que têm que destinar uma parte do orçamento deles para a Seguridade Social. Então existe toda uma arrumação constitucional, receita e despesa.

A Previdência é uma parte desse todo. Então eu não posso dizer assim: “A Previdência Social está quebrada” se a Seguridade Social tem superávit. A Seguridade Social tem apresentado superávits desde o início. O sistema começou em 1988; a partir do ano 1990, começou a arrecadação das novas contribuições. Isso foi sendo ampliado na medida em que as novas contribuições foram sendo implementadas aos poucos, e sempre sobrou dinheiro, nunca faltou, sempre sai uma sobra. E também em virtude dessa sobra, o que o Estado brasileiro resolveu fazer? Desviar dinheiro da Seguridade Social para outras finalidades. Então como é que você pode dizer que uma coisa está quebrada se você está desviando uma parte dos recursos para outras áreas que não são saúde, previdência social e assistência social? É o que se faz desde 1994, e acabou agora de aprovar mais uma emenda constitucional, em que esse desvio vai até 2023. Hoje em dia o desvio se chama DRU, Desvinculação de Receitas da União, que ano que vem – foi aprovado agora o orçamento – esse desvio vai representar R$ 117 bilhões, dinheiro as Seguridade Social que está sendo desviado para outras finalidades.

Então a premissa de que a Previdência está quebrada é falsa porque a Previdência faz parte da Seguridade Social, e a Seguridade Social é superavitária apesar de estarem desviando dinheiro dela. Por isso que o argumento é financeiro, quer dizer, o argumento que motivou a reforma é financeiro: “A Previdência está quebrada. Eu vou arrumar a casa para salvar a Previdência”. Então isso é falso. E à medida que se faz toda a PEC, o que em suma ela realiza? Corte dos direitos sociais. Porque eu tenho de diminuir despesa, por isso é que é só financeira [a proposta da PEC]. Não tem nada, você não vai encontrar uma das observações de mudança que diga: “Bom, agora esse benefício aqui melhorou. Esse benefício ficou melhor. As pessoas vão estar mais protegidas”. Em nenhum caso aconteceu isso. Por isso que é só financeira. Porque tem dois lados: tem o financeiro, que foi previsto pela Constituição como seria o financiamento desse programa todo. A Constituinte criou as condições para que esse programa funcionasse a contento. E você tem o lado social, que são direitos sociais, isso está no capítulo dos direitos humanos. Aí você vem com uma reforma que ignora o lado social e só se preocupa com o lado financeiro.

O que me chama a atenção, talvez aquela frase [declaração dada à Folha de S.Paulo – na edição de 08/12/2016 – de que a PEC tem caráter financista], foi que eu falei para a pessoa lá da Folha. “Olha, eu olhei a PEC, e o que me chamou a atenção na última página foi quem assina a exposição de motivos”. [Ele mostra o nome do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, na proposta impressa]. O que mostra que quem fez isso não está minimamente preocupado com lado social do assunto. Ele só quer fazer economia.

CSB – O senhor concorda que essa proposta foi preparada para que o mercado financeiro continue tendo sua parcela no orçamento da União?

Wagner Balera – É isso mesmo. Agora, eu considero que a reforma previdenciária é algo necessário e urgente. Portanto, é outra linha. Há muita gente que diz assim: “Não precisa de reforma nenhuma”. Não é o meu modo de ver. Eu entendo que, para o futuro, o sistema não aguenta. Ele está fadado ao insucesso se não realizar os ajustes, que, aliás, no mundo todo estão sendo feitos. O problema previdência, o problema saúde, o problema assistência aos pobres, não é um problema do Brasil, é um problema do mundo. E no mundo está se tratando de mexer, porque a modelagem, essa que está aí, ela foi concebida no século 19. Então ela já perdeu a sua sustentabilidade histórica e social. Então é preciso sim haver uma reforma. Está no rumo certo, portanto, a reforma quando ela estabelece uma idade mínima para as aposentadorias. Não me cabe – porque eu sou um jurista, eu não sou um político – discutir qual é a idade, mas é inconcebível não haver uma idade mínima para as aposentadorias. Isso é necessário, aliás já devia ter sido fixada há 20 ou 30 anos.

A Lei Orgânica da Previdência Social de 1960 (a primeira lei que unificou toda a parte previdenciária do regime geral, que é o regime dos trabalhadores. Existem duas previdências no Brasil. O Regime Geral e os regimes próprios dos servidores públicos). Essa lei de 1960 foi a unificadora, porque antes eram esparsos, cada categoria profissional tinha a sua legislação previdenciária. Então os bancários tinham a sua, os comerciários tinham a sua. Talvez você já tenha se deparado com aquelas siglas – IAPI, IAPC, IAPM –, porque cada uma tinha a sua legislação. Essa lei de 1960 unificou tudo. Então é o marco legal unificado. E essa lei durou até 1991, ou seja, até a atual lei. Essa lei, em 1960, fixava uma idade mínima para a aposentadoria: 55 anos, conforme a realidade da época. Naquela época, a sobrevida média era de 62 anos, então a idade de 55 anos [para se aposentar]. Só que isso de repente desaparece da legislação, criando uma falha grave, porque permitiu que as pessoas tivessem aposentadoria precoce e onerando o sistema, porque, na verdade, se aposentando precocemente, ele continua trabalhando, ele continua produtivo. Então o primeiro problema é: é necessária a fixação de uma idade mínima para as aposentadorias imediatamente. Não há o que protelar. “Ah, mas e o pessoal que está no meio do caminho?”. Bem, para isso existem as chamadas regras de transição, em que se vai fotografar o quadro atual e dizer: “Bom, a Maria… faltavam para ela três anos. Bom, então vamos dar um jeito.”. A rigor, a Constituição de 88 já deveria ter estabelecido isso [a idade mínima]. Não tem sentido que em 88 não fizeram. Então esse ponto é essencial.

Outro ponto importante que a reforma está estabelecendo e está sendo muito criticado, mas eu considero algo estrutural no sistema, é o seguinte: a Previdência não tem como propósito manter o padrão de vida da pessoa. Não é essa a função da Previdência. A função da Previdência é a de garantir as necessidades básicas do trabalhador, não é manter padrão de vida. Padrão de vida se mantém de outras formas, das quais também faz parte a contribuição individual do sujeito para si mesmo, não é da sociedade. A sociedade me mantém o status de classe média quando a imensa maioria do povo é pobre.

Então, uma coisa que a PEC apresenta é a seguinte: qual vai ser o valor do benefício do segurado? É a média da vida inteira. Eu acho absolutamente correto, porque isso reflete a vida laborativa. Então, eu vou pegar 2016. O cara que começou em 1980, em 2015 ele teria 35 anos, que é o padrão da aposentadoria por tempo de contribuição. Todo esse período contributivo é que é a vida dele como segurado. “Ah, mas ele ganhava um salário mínimo, e agora ele está no teto”. Pois é, mas é justamente o salário médio. Então esse é um critério que me parece de justiça social. O segurado tem o benefício dele calculado sobre a média contributiva da vida dele, num reflexo de que toda a história está sendo considerada, e não só o final da vida. É uma providência que me parece útil, com uma forma técnica. Em muitos países é assim, não foi um achado dessa equipe econômica. Em muitos países funciona dessa maneira, então o benefício é sobre o salário mínimo médio, isto é, é um reflexo da vida contributiva como um todo.

CSB – Dentro da questão da idade mínima, um dos pontos mais criticados é que a questão do estabelecimento de uma idade mínima geraria alguns problemas no seguinte sentido. Fazendo um cálculo rápido e básico, com a aprovação da PEC, um trabalhador teria de começar a trabalhar com 16 anos e continuar contribuindo ininterruptamente por 49 anos para que ele receba a integralidade do benefício. Partindo desse ponto de vista, e segundo o IBGE – que afirma que alguns estados do Nordeste, como Alagoas, Maranhão e Piauí, não têm uma expectativa de vida que vá ao encontro da idade mínima proposta pela PEC – e também da questão dos trabalhadores rurais que entrariam no Regime Geral, como o senhor analisa o estabelecimento de uma idade mínima dentro dessas duas questões?

Wagner Balera – Você tem hoje os mecanismos de informática que são capazes de criar um modelo sob medida para cada região. Então é possível que o Congresso tenha de discutir idades mínimas regionalizadas, como antigamente havia o salário mínimo regional. O País era dividido em algumas regiões, conforme a situação econômica. Hoje o salário mínimo é o mesmo, mas não são todas as regiões que estão no mesmo diapasão. Então seria possível tecnicamente o estabelecimento de 5 idades mínimas conforme o perfil etário das populações distintas. A Constituição fala claramente que a missão constitucional é a redução das desigualdades sociais e regionais. Então é um parâmetro constitucional estabelecer critérios de redução, um deles seria o estabelecimento de idades mínimas.

O segundo ponto é especificidade do rurícola, que nós temos que considerar três aspectos. Primeiro é que essa massa da população sempre foi beneficiária do plano assistencial. O estoque, quando se fala em estoque de benefícios rurais, que parece que são cerca de 4 milhões os benefícios rurais atualmente. Desse estoque, a grande parte é da época em que o modelo era assistencial, isto é, o trabalhador não paga para ter direito. É diferente de Previdência, onde você paga para ter direito. O sistema brasileiro, quando foi criado, pela primeira vez na história a proteção social rural foi no modelo assistencial: é o pró-rural, que deu origem ao Funrural [Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural]. Então o beneficiário não tinha de pagar nada porque era um plano de natureza assistencial.

Então, há uma realidade histórica de que o grupo rurícola é assistido até a Constituição de 1988 ter criado a igualdade entre o urbano e o rural, mas antes disso não havia essa igualdade. E a igualdade também não foi total porque a Constituinte percebeu que a realidade do rurícola, do ponto de vista contributivo, não é a mesma do trabalhador urbano. Então criou uma modalidade de contribuição diferenciada sobre a produção rural, que eu considero corretíssima e que essa PEC está extinguindo.

A PEC elimina a contribuição especial sobre a produção e diz: “Todo trabalhador rural tem que contribuir sobre o salário mínimo”. O que é ridículo porque boa parte, ou a maior parte, deles não recebe um salário mínimo por mês. Vai depender da realidade produtiva e do tipo de ajuste que ele tem com o dono da terra. Porque a imensa maioria dos trabalhadores rurais não tem sua própria terra. O Brasil é um país que não teve reforma agrária. Se fala em reforma agrária desde 1964, formalmente, porque a reforma agrária é uma conquista do século 18. E aqui nunca se enfrentou uma reforma agrária. Então a imensa maioria faz o quê? Trabalha para o fazendeiro, e aí depende da realidade local. Às vezes ele é parceiro, às vezes é meeiro, arrendatário rural. Então tem meses em que ele não ganha nada. Ele tem uma economia de subsistência. Normalmente o dono da fazenda permite que o sujeito construa a casinha dele e tenha uma horta em volta da casa, e naquela horta ele cria seu porco, sua vaca, colhe o feijão, enfim, a cesta básica produzida por ele. E às vezes é isso que ele tira no mês porque choveu, ou por peste. Não há realidade de salário. Então certamente muitas pessoas no meio rural não ganham um salário mínimo por mês sempre.

Eu estou fazendo um cenário, porque não me recuso a discutir. Pode ser que para o trabalhador rural brasileiro ainda seja o caso de ser mantido o modelo assistencial. Isso é que é um debate de reforma que tem que estar aberto. Pode ser que a realidade do campo brasileira diga: “Quem vai continuar bancando a proteção social rural vai ser a contribuição de toda a sociedade”. É um capítulo à parte saber se alguma vez na vida o patronato rural contribuiu. Porque é outro capítulo. A gente já sabe que não, mas seria um outro debate, um outro capítulo. E que talvez, nesse momento, não haja correlação de forças para levar adiante um debate dessa natureza. Mas é de uma obviedade total que o patronato rural nunca contribuiu.

Agora vem a questão da idade. Tradicionalmente, são cinco anos menos. Porque estatisticamente, devido às condições agressivas do trabalho rural, o trabalhador morre antes. Não sei se o IBGE tem esse formato estatístico: a média do grupo familiar rural. Mas o que se sabe, historicamente, é que é uma população que morre antes. Isso é intuitivo, eu não preciso de estatística para saber que é assim. Então, como a legislação previdenciária cuidou do problema até agora? Cinco anos menos. Então se você está falando na idade mínima de aposentadoria em 65 anos, para o rurícola teria de ser 60. Note bem: eu não estou me apegando à idade de 65 anos. Isso é uma discussão política. Eu estou só afirmando: tem de haver uma idade mínima. E me parece que é de justiça social que a idade para o trabalhador rural seja menor. De quanto será a diferença? Aí já é a estatística que vai aferir, porque o sistema fecha se ele considerar a variável estatística. A estatística está dizendo: “A realidade agora é essa. Para eu garantir o benefício de uma pessoa daqui há 40, 50 anos, eu preciso desses dados”. Funciona como um sistema de caixa. Portanto, o dado técnico, que não é tão maleável porque ele está posto, precisa ser levado em consideração.

CSB – Outra questão é a desvinculação dos benefícios do salário mínimo. DIEESE e instituições que fazem esse levantamento já disseram que, por conta da vinculação desses benefícios sociais ao salário mínimo, melhorou a vida das pessoas mais pobres. Com a desvinculação, o senhor acha que existe um risco? É inegável que houve, nos últimos 10, 12 anos, uma melhoria na qualidade de vida das pessoas economicamente menos favorecidas. O senhor acha que, com essa desvinculação, esse perigo pode voltar a acontecer?

Wagner Balera – Primeiro, eu sou favorável à desvinculação, porque me parece que uma coisa não tem nada a ver com outra. Uma coisa é a evolução normal da massa salarial, que no Brasil, historicamente e culturalmente, está sempre muito ligada com o salário mínimo. E as amarrações que houve, também no plano histórico, de qualquer coisa com o salário mínimo não foram boas nem para quem estava vinculado, para ele que é o trabalhador, nem para a comunidade. Por isso que em 1976 o legislador disse: “Não pode misturar nada com o salário mínimo”. Porque, antigamente, o salário mínimo estava se transformando num indexador, se fazia negócios em salário mínimo, em tudo. Então, a desvinculação é um dado essencial para que as coisas não se confundam. E por que a vinculação não é boa para o sistema de Previdência? Porque a Previdência está baseada no salário, e o salário aumenta não é pelo salário mínimo, é pelo mercado. Quer dizer, assim, não significa que se o salário mínimo aumentou 10%, a arrecadação aumentou 10%. Não é uma relação de causa e efeito entre o aumento do salário mínimo e o aumento da arrecadação. O cardápio de salários que é carregado para a folha é muito diferenciado. No plano de negociações salariais, pode ser que os sindicatos, por exemplo, negociem uma melhoria para certas categorias que ainda estão muito aquém do padrão de salário médio por aquele grupo, e não tão bom quanto esse para os demais. Isso faz parte, portanto, do mundo do trabalho.

Então, a vinculação atrela o dispêndio do sistema previdenciário a uma realidade que não é dele, fazendo com que, quanto maior seja a massa de beneficiários do salário mínimo – e hoje é muito grande, é algo de 83% a 85% dos beneficiários que recebem um salário mínimo. […] É como se a cada aumento a arrecadação tivesse que crescer esse tanto. E isso não tem se verificado. Portanto, o risco para o sistema é muito grande. Você dirá: “E o que eu ponho no lugar?”.

CSB – Eu ia te fazer essa pergunta.

Wagner Balera – O que você põe no lugar é um indexador separado, um indexador idôneo e que mantenha, conforme garantido constitucionalmente, o poder aquisitivo dos benefícios. Seria preciso que a comunidade, especialmente órgãos especializados, como é o caso do DIEESE, que são instituições autônomas, independentes… Bom, nós temos como criar.

A construção civil não criou o deles? Nós temos que criar um indexador idôneo que vai ser o critério de reposição dos benefícios, porque, mesmo com a vinculação, isso é um fenômeno, eu percebo, mesmo com a vinculação, os benefícios estão perdidos.

CSB – De que maneira o senhor analisa isso?

Wagner Balera – Quanto mais distante você está da sua aposentadoria, menor é, proporcionalmente, o que você ganha para os benefícios que estão no patamar do salário mínimo. Eu ganhava salário mínimo e continuo ganhando salário mínimo. Mas os que estão entre o mínimo e o teto, quanto mais perto ele está do teto, mais ele está perdendo poder aquisitivo ao longo da sua fruição de benefícios. Então não é uma garantia que eu possa defender com unhas e dentes. Talvez eu tenha que criar um mecanismo de indexador que seja confiável pela massa dos beneficiários. E só é possível em debate. Não se faz uma reforma desse porte com prazo de 6 meses, 4 meses, para debater e fechar, é ridículo. Isso é de um ridículo atroz. Mas seria o caso de se partir para um indexador autêntico que talvez se aproximasse mais da realidade da arrecadação. Por quê? A equação é muito simples. É a equação da nossa vida. É o seguinte: quanto que eu ganho? Eu tenho a minha despesa. A minha despesa tem que se ajustar ao que eu ganho, não é? Se eu ganho menos do que eu gasto, eu vou fazer o quê? Vou entrar no cartão de crédito, no cheque especial, e, daqui a pouco tempo, eu estou atolado em dívidas, porque eu vou para a lista negra do SPC, e por aí vai. Então, eu tenho que ajustar o meu dispêndio à minha receita. Assim também é o sistema de previdência. Ele tem por que exigir outra saída. Cada vez que a folha de benefício aumenta mais que a arrecadação, tenho que aumentar a carga tributária. Só que essa já é insuportável. Nós, que somos assalariados, eu sou professor na PUC. Nós, que somos assalariados, nós já temos direto, sem muita elucubração… Eu tenho 38,5% do que eu ganho tomado pelo governo. São os 27,5% do imposto de renda e os 11% de contribuição previdenciária. Ninguém escapa. Então, praticamente 40% do que eu ganho como assalariado eu já pago de imposto. Como é que eu vou suportar uma carga tributária maior?

Bom, é verdade, você tem o lado das empresas, que também é um pouco relativa a capacidade tributária da empresa porque normalmente o que a empresa faz é repassar para o custo, não é o empresário quem paga. Ele não vai reduzir o lucro dele para pagar imposto. Ele faz uma conta, e nessa conta ele embute. Eu vou vender esses óculos por 100, porque aqui nos 100 eu sei que estão os meus 10% de margem, como eles utilizam essa expressão. A margem nesses 100 está garantida. O resto eu vou pagar imposto, pagar empregado, vou pagar de insumo, mas também há um limite para isso, né? Amanhã, se eu ficar aumentando, aumentando, ninguém vai conseguir comprar os óculos. Ninguém vai ter grana para comprar os óculos. Isso que é artigo de primeira necessidade, porque sem esse eu não consigo enxergar. Nisso tudo importa um debate. Me parece, e nisso eu estou de acordo em linha teórica, que a desvinculação é um bem para o sistema. Agora, qual é o indexador que você vai pôr no lugar? Isso são os especialistas, os técnicos, as pessoas que mexem com isso que terão que definir. Não pode vir simplesmente um cheque em branco. O que está acontecendo na PEC é o seguinte: ele meteu esse cheque em branco para que uma lei qualquer diga como é que vai ser o reajuste dos benefícios. Aí também não, né? A gente precisaria acreditar em Papai Noel nessa época de Natal. Eu não quero acreditar em Papai Noel, eu já sou adulto.

CSB – Um levantamento preliminar do DIEESE diz que 70% dos que contribuem, após a aprovação dessa PEC, vão estar fora da previdência pública. Com a aprovação dessa proposta, há também argumentos de que haveria uma fuga para a previdência privada. O trabalhador percebe que não vai conseguir cumprir os atributos mínimos que a Previdência estabelece e analisa que não é viável aquilo para ele. Então ele parte para uma previdência particular porque julga que vai conseguir receber aquele benefício poupado depois de alguns anos. Como é que o senhor analisa isso, a fuga para a previdência privada? Como isso pode prejudicar o próprio sistema de arrecadação da Previdência?

Wagner Balera – Eu considero que ainda não existe no Brasil uma cultura previdenciária. Na verdade, nós pagamos o INSS porque nós somos obrigados. E não porque nós queremos ter uma previdência. Nós pagamos porque, como a própria lei nos chama, “segurado obrigatório”. Então a previdência funciona graças a esse caráter compulsório que ela tem. Você vai pagar porque você é obrigado, e não porque você quer ter uma pensão, quer ter um benefício quando você ficar doente. Isso não está para o jovem projetado na sociedade. Não existe, portanto, uma cultura previdenciária, de um lado. De outro, uma reforma que crie uma casamata impeditiva de gozos de benefício para frente vai aumentar o mercado informal de trabalho. Portanto, não é que eu vou trocar uma coisa pela outra. Eu vou trocar uma coisa pelo nada. Porque você está criando uma legião de trabalhadores informais que, quando der e se der, ele faz alguma poupança. Seria tolo eu pensar que ele faria uma poupança num PGBL ou num VGBL. Isso é imponderável. Não dá para a gente pensar isso. É o que eu estou te falando também. Isso é um argumento político. “Eu estou fazendo essa reforma toda para estimular a previdência privada”, como se na cabeça do trabalhador funcionassem as coisas assim. Eu vejo que, no fim do mês, o sujeito vai ver se ele pode pagar alguma coisa. E se ele não puder pagar, ele não vai fazer nada com aquilo que ele não está mutuando para o sistema formal. Se ele sair para a informalidade, ele não vai para nada, não vai para o mercado de previdência privada, na minha opinião, na minha avaliação. Justamente por não haver uma cultura previdenciária.

CSB – A cultura previdenciária, em teoria, seria somente das pessoas com maior entendimento de planejamento de futuro e condições financeiras para tal então?

Wagner Balera – É. Eu tenho um plano de previdência privada. Eu acredito na previdência privada, por isso eu tenho um plano de previdência privada. Eu tenho um plano como planejamento financeiro porque me dão 12% de renda bruta de incentivo fiscal. Então, em vez de dar para o Leão, eu ponho nesse plano de previdência privada. Como há uma esperança de que amanhã, quando eu tiver que parar de trabalhar, uma parte vai ficar para mim, outra parte vai para o Leão; mas, pelo menos, eu não estou dando tudo para o Leão. Portanto, a minha cabeça que fez esse plano não fez pensando em previdência, fez numa maneira de pagar menos imposto. Planejamento tributário. É diferente, por exemplo, de quando você faz um plano de saúde. Aí sim eu sei que amanhã eu vou ficar doente, e talvez eu não seja atendido de maneira adequada no sistema público, o que nem sempre é verdade. “O sistema público não presta”, mesmo assim, não é verdade isso. Às vezes, na minha cabeça, diferente da massa de informações que eu recebo diariamente, pode ser que eu faça um plano de saúde por necessidade e cautela, porque aí eu sei que vou pagar e vou ter um atendimento X, Y ou Z, conforme o plano de saúde que eu tiver, que também não sou eu que estou pagando, é você que está pagando, porque eu abato o valor do plano de saúde no imposto de renda. Então, é uma coisa totalmente distorcida.

CSB – Mesmo não existindo essa cultura, justificada pelo senhor, de previdência privada, se considerarmos a fuga para a informalidade, não seria um problema futuro de arrecadação da Previdência Social?

Wagner Balera – É um problema do Brasil. Talvez um dos maiores especialistas do Brasil no mercado de trabalho seja o professor José Pastore, da USP. O Pastore tem afirmado já, há muitos anos, que o nosso mercado informal de trabalho já passa dos 40%, portanto tenderá, numa coisa dessa, a aumentar o mercado informal de trabalho. Se você acena com uma obrigatoriedade e a pessoa não consegue projetar o futuro dela, ela vai dizer: “Bom, pra que que eu vou pagar?”. É também isso em tese. Mas o grande problema do Brasil é a informalidade, o que talvez tenha que se pensar em um futuro na modelagem de filiação. Como é que você filia todo mundo, de modo a reduzir a informalidade? Isso teria que diminuir a contribuição e criar outros mecanismos de financiamento, porque hoje a contribuição média é de 10%. Ela vai de 8% a 11%, mas a média é 10%. Às vezes, isso pesa no bolso do trabalhador. Talvez, uma discussão leal sobre a reforma tenha que ser: “Bom, como é que eu vou trazer o informal para dentro da formalidade?”.

CSB – Partindo dessa sua última análise, o senhor já disse que é favorável à idade mínima, é a favor da desvinculação do salário mínimo. Dentro do conjunto das propostas, além do caráter financista, o que é mais nocivo para o trabalhador dentro do projeto?

Wagner Balera – As duas coisas que me parecem perversas são justamente aquelas que atingem os mais pobres dentre os pobres. A primeira é essa estranhável destruição do benefício assistencial. O benefício assistencial é uma conquista da Constituição de 1988. Essa conquista vem sendo aperfeiçoada e se fixou uma idade mínima. É a natureza do benefício assistencial de 65 anos. Não tem nenhuma justificativa teórica a não ser massacrar o pobre aumentar esta idade para 70 anos. Porque é essa camada da população que morre mais cedo. É esse pobre, aliás, que a Constituição chama de desamparado, que nunca o Estado fez nada por ele. Então, foi uma luta. Esquecer a história do Brasil é difícil. Foi uma luta na Constituinte para se dar esse benefício, LOAS. Agora, aumentar a idade para 70 por quê? Sobre o argumento de que ele não vai mais querer ser segurado, aí a gente volta para aquela discussão política que, num cenário de 3 meses, não vai ser possível travar. Quem é o assistido no Brasil? É aquele que está fugindo do emprego? Não é bem assim. E a pessoa com deficiência? Então, você está mexendo no único programa constitucional a favor do pobre, que é o benefício assistencial. Ah, e nesse a desvinculação é automática. Automaticamente, nós sabemos que o benefício vai ser menor que o salário mínimo. O salário mínimo não é o mínimo da dignidade humana? Então, se eu tivesse que sair para a rua, para contrariar a reforma, a minha bandeira seria essa. Não tem cabimento mexer no benefício assistencial, que é uma dívida social que o Brasil tem com os mais pobres. O idoso (o conceito de idoso é 65 anos) não é uma jabuticaba. É mais ou menos um consenso universal que, com 65, a pessoa é velha. Ou pessoa com deficiência… esse ataque, isso me parece um massacre. É contra o pobre.

Voltamos para o tema rural. O que é que aconteceu? É contrário ao trabalhador rural isso. Primeiro, tirar o critério de equidade no custeio é uma previsão constitucional. Equidade na forma de participação de custeio, quando o contribuinte é diferente, a contribuição tem que ser diferente, então ele tira a contribuição sobre a produção rural, isto é, sobre a realidade do trabalhador rural e cria uma contribuição fixa sobre o salário mínimo. Isso não tem o menor cabimento. Então, também achei muito cruel. Mas eu entendi por quê. Porque ela é só financeira. Então faz o seguinte: ele vai contribuir sobre o salário. Enquanto não tiver noventa contribuições, não tem benefício. Está chutando para 8 anos depois da promulgação da emenda qualquer benefício rural? Ora, tenha santa paciência. Então, pra mim, são os dois pontos realmente inexplicáveis. Não quero nem pensar porque é que foram colocados. Mas parece um verdadeiro massacre aos pobres.

CSB – Dentro desse caráter financista, da lógica macroeconômica vigente e sob a afirmação do superávit da Seguridade Social, o senhor consegue propor uma alternativa?

Wagner Balera – O Estado tem que parar de tirar dinheiro da Seguridade Social. Numa PEC dessa, uma negociação primeira seria: vamos acabar já com a Desvinculação de Receitas da União. Segundo:  vamos ver quanto se desvinculou de 1994 até agora, fazer uma auditoria disso e dizer: “Olha, foi desviado, sei lá, 2 trilhões. Vamos só fazer uma conta. Mas vamos pegar os 117 [bilhões de reais, valor da DRU para 2017] e multiplicar por esses anos de 1994 para cá; eu vou saber mais ou menos quanto foi desviado. Então talvez fosse o caso de o Estado dizer: “Olha, o sistema de Seguridade Social tem um lastro em seu favor que eu, Estado, estou assumindo para bancar qualquer insuficiência financeira doravante dos próximos 50 anos.”. Você está criando então um verdadeiro compromisso social, não financeiro. Porque ele assume que tem um trilhão de dívida com os bancos. Qual é a dívida que ele tem com a comunidade? Aí, você estaria dizendo: “Nossa reforma realmente está preocupada com o futuro; os números estão sendo colocados na mesa, cada um assuma sua responsabilidade.”. A responsabilidade do trabalhador é a menor de todas. Outra responsabilidade é do empresariado. Esse também tem fugido de pagar contribuição previdenciária, e quanto mais ele foge, mais ele ganha os benefícios dos Refis e dos PAES da vida. Então, ele não paga esperando o próximo Refis. Eu ouvi muito empresário falar isso. Eu não estou pagando porque vai vir outro Refis. Então, é responsabilidade social, não é? Nas costas do trabalhador, nas costas dos empresários honestos que pagam em dia porque têm vergonha na cara. Quem tem vergonha na cara paga em dia, não atrasa. Se ele enfia os 10% da margem no bolso, ele tem que pagar as contribuições. E, finalmente, a responsabilidade do próprio Estado. O grande vilão da história do Brasil é o Estado. O Estado nunca fez a parte dele, continua não fazendo, tanto que está desviando dinheiro da Seguridade. É um pacto social realmente o que estamos querendo? É uma reforma para garantir o futuro do Brasil? O futuro do Brasil não é um governo, não são dois governos. O futuro do Brasil é a sociedade toda. Eu acho que esse debate está faltando.

CSB – Isso pode ser posto em prática já no debate desse projeto?

Wagner Balera – Sim, eu acho que tem que ser colocado às claras. No dia que essa PEC foi apresentada, no dia 6 de dezembro, estava lá reunido o foro da frente parlamentar em defesa da Previdência Social, numa audiência pública da qual eu participei, e lá havia alguns cartazes. Por exemplo, um deles: “Auditoria”. Isso era uma coisa indispensável para começar a conversar sobre a reforma, para que a gente soubesse qual é o rombo. Porque se eu quero consertar minha casa que está com problema de alicerce, que é o que está se afirmando, eu primeiro preciso saber qual é o problema do meu alicerce. Eu não vou derrubar a casa para poder refazer o alicerce sem saber qual é a real dimensão do problema. Aqui o que está se fazendo é derrubar a casa sem verificar o problema do alicerce.

CSB – O senhor acha então que até aqueles números apresentados pelo Henrique Meirelles…

Wagner Balera – Isso é tudo falso, tudo falso.

CSB – E dado o fato de que a Seguridade Social é superavitária…

Wagner Balera – E de que acabou de ser aprovada a DRU até 2023. Por isso que é só financeira a PEC.

Fonte: CSB

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